Do que a vida lhe apresentou, guarda poucos arrependimentos; é dessas que acredita que mais vale o sabor de tentar e se frustrar do que o dissabor de nunca ter tentado e não saber que gosto tem. Mas, pudesse voltar no tempo, tinha feito uma ou duas coisas diferentes aqui e ali. É que, quando se vê sem lugar, sem ter pra onde correr, é normal do ser humano querer dar um passo atrás. O que acontece é que, pelo menos até onde sabe, ainda não é possível voltar no tempo. Anda tentando observar o quadro geral, "the big picture"; essa coisa de olhar de fora porque, quando se está imerso, não se é capaz de ver todo o cenário...
Acontece que passarinho, depois que aprende a voar, não quer saber de gaiola, mas se prende por vontade própria quando quer salvar um sonho, desses que já nascem, são inerentes. O problema é que, estando na gaiola e vendo os sonhos desmoronarem, o pássaro não consegue seguir outros sonhos e nem voar para longe em fuga do que desandou. Então, o pássaro na gaiola já nem canta mais e tem as asas cortadas. Passa o dia pensando em como fugir dali e esquece de sonhar e de buscar meios para que os sonhos aconteçam.
Um sonho. Maior que todos. Deve-se seguir? Ou a soma de outros sonhos pode se equiparar? Quem é que mede, o cérebro ou o coração? Falou mais o coração, e ela decidiu jogar tudo para o alto e seguir. Emprego, casa, dinheiro... Largou tudo e foi sonhar acordada, viver o que nunca havia podido. Mas parece que sonhos são castelos de areia, vem a onda e desmonta, sem dar tempo de salvar. Agora, sem nada, tenta se reerguer, mas se vê, mais uma vez, como tantas outras, presa a compromissos que fez, a contratos que assinou sem atenção e que não a deixam caminhar...
Pássaro se debate na gaiola, agita as asas e mal faz vento. Chega a comida e, nessa hora, tenta fugir, mas, com as penas cortadas, só faz ir ao chão. De volta à gaiola, agita-se, chilreia, mas quem dará ouvidos a um pássaro que não canta? Resignado, emudece. Aquieta-se. Chega a perder a cor.
O tempo passa e parece que a vida brinca de pique-esconde com as vontades dela. Em uma brecha, vê possibilidades, mas já não sabe se crê, se quer crer... porque dói. Dói sentir a alegria para, em seguida, ver tudo dando errado. Por medo da dor, teme o que nem sabe se pode ser. Por sentir o tempo passar, já não sabe se vale a pena. Por que treme, já nem enxerga direito. Se não tivesse sonhado, estaria bem à frente. Se pudesse não sonhar, não sentiria a tristeza de ver tudo desabar. As memórias tomam o seu lugar...
Segue mudo o pássaro. Desaprendeu a cantar. Para ele, o tempo só passa, nem tem mais o que esperar. Perde-se em lembranças, memórias do que um dia foi. Asas abertas no ar, distâncias percorridas rumo a um futuro que poderia apresentar milhares de surpresas, infindos resultados. Veloz, vento no corpo, vagueando sob o sol. Voava alto e era destemido. Já não sabia ser assim, não conseguia se encaixar e nem conseguia imaginar uma saída. Prendia os sonhos junto a si e se agarrava nas memórias poucas que tinha.
Sem acesso ao sonho, passa o tempo perdida em memórias, mas nunca foi boa nisso, mal se lembra do passado, mal se lembra do que sonhou na noite anterior. Mas tenta entender o porquê de ser como é e de as coisas nunca acontecerem da maneira prevista, tenta decodificar o passado para tentar entender o presente e, quiçá, mudar o futuro. Mas como fazer isso, se mal se lembra de comer...
Sonhara um dia com certas magias, repetiam-se cenas e mal entendia. Davam-lhe de beber, e bebia. Depois daquele líquido, sonho não se esquecia, era o que se dizia.
Um dia chorou. Como poucas vezes, chorou. Não entendia o chôro, mas não conseguia conter as lágrimas, então, chorou. Aquilo devia conter o sonho não concretizado, a dor de não se saber, o tempo passado, as incertezas, a falta de memórias. Chorou um rio que secou, quis arrancar os cabelos e arrancou. Mas não entendeu o porquê e nem entendia a si. Na falta do sonho que quis e não teve, buscou outras maneiras de viver, mas se lembrava do que vivia toda noite...
Um dia, o pássaro viu, pela janela, passar um bando dos seus, sentiu falta, quis estar junto. Será que ainda sabia voar? Não se lembrava de como, na infância, tinha aprendido, mas achava que ainda saberia alçar vôo, se tivesse oportunidade e penas nas asas.
De volta a uma rotina próxima à do passado, amargurava o arrependimento de ter deixado tudo para trás em busca de algo que não deu certo. Se fosse contar os arrependimentos, não encheria uma mão, mas esse, definitivamente, seria o polegar. Pouco a pouco, reajustava-se, mas se sentia presa. Ao sonho que não foi, à vida que vivia, ao tempo que não passava, ao velho não-lugar em que sempre caía, a máscaras que carregava sem saber, ao ser que achava que não pertencia. Estava presa a tudo isso e tentava, em vão, mover-se, mas não sabia pra onde...
O pássaro começou a se questionar se era pássaro. Dentro de um cubículo, asas inertes, não cantava, não fazia nada que um pássaro deveria fazer. Seria pássaro ainda, mesmo sem ser?
Acordava toda manhã com as imagens vívidas das cenas mentais na cabeça. Não haviam mentido no naquele sonho-magia. Lembrava-se de tudo que se passava à noite, mas não conseguia se lembrar de comer. Tentava acessar memórias passadas, que explicassem a razão de ser como é, mas conseguia juntar seis ou sete momentos aleatórios e nada mais, nem nada que explicasse. Sentia-se vazia de significado e significações, não sabia quem era mais ou quem gostaria de ser...
Em um transe, em meio a tantos, enquanto passavam-lhe, uma rápida imagem que surge no fundo da mente parece trazer uma resposta. Mas não pode ser. A dor é tanta que quase desmonta, quase que cai, junto a seu mundo já frágil. Perde todos os sentidos por um espaço de tempo que parece uma eternidade, mas um arco-íris e uma cobra vêm lhe salvar.
Já não sabia nem o que sonhar. Uma vida construída em memórias apagadas porque era preciso silenciar a injúria...
Uma nova bebida mágica para tudo alterar, um sabor amargo para desvelar. Enquanto cantavam, a bebida a mostrar: memórias caladas a brotar, a ira e o medo - vontade de gritar -, lágrimas e o coração a sangrar.
Sempre escondida; assim viveu. A poucos permitia proximidade, protegia-se das dores que o mundo impinge com uma armadura de ferro que mal a permitia ver o que se passava do lado de fora. Calava-se e se fechava, o tempo todo sem se mostrar. Era mais fácil fingir ser outra, a forte e durona, assim, ninguém nem tentava chegar mais perto do que ela gostaria. Dias de calor infernal debaixo daquela armadura. O peso era tanto que as costas já arqueavam e não suportavam mais manter o corpo ereto. Mais fácil esconder faces de si que deixar que o mundo lhe abusasse a sorte e o espaço...
O pássaro ficou quieto por muito tempo. Os humanos começaram a estranhar e, na tentativa de alegrá-lo e fazê-lo cantar novamente, fechavam todos os dias a janela e soltavam o bicho dentro de casa. O pássaro permanecia todo o tempo no lugar em que era colocado fora da gaiola. Os humanos nem cortavam-lhe mais as asas pois que ele nem se mexia. Toda manhã, tiravam o bicho da gaiola e nada. Tentaram de tudo, sem entender que lhe haviam tolhido o direito de ser pássaro, que o bicho não sabia mais passarar. Mas tentavam, queriam vê-lo cantar, para eles, sinônimo de felicidade. Cantar é pouco para quem um dia soube voar. O pássaro que não sabia ser pássaro - e pensava se não era outra coisa - só esperava o tempo passar. Entrava e saía da gaiola quando os humanos assim decidiam. Em um dia de calor, ligaram na sala um ventilador. O pássaro sentiu, depois de muito tempo, o vento bater em suas penas. Lembrou dolorosamente que era pássaro, que um dia soube voar. Vieram à mente, lembranças de uma infância-pássaro feliz. Dos pais alimentando a família, construindo o ninho e ensinando a voar. Lembrou-se do abuso sofrido no dia em que o prenderam - e ele, que achava que havia entrado ali por escolha, entendeu que foi forçado a uma jaula e que perdeu parte da vida ali preso até se esquecer de voar. Abriram uma janela, o calor era muito e o pássaro nunca se movia. O vento batia no pássaro e as memórias quase o naufragavam. Mas a memória que mais alto gritava era a do abuso sofrido ao ser engaiolado. O vento batia, um humano olhou para a janela e para o pássaro e se preocupou. Por precaução, deixou os demais na sala e foi buscar a gaiola. Ao ouvir o som dos metais, o pássaro percebeu que era sua única chance. Ao que parece, voar, assim como andar de bicicleta, não se esquece. Alçou vôo e cantou, enquanto encontrava a liberdade.
Depois daquele líquido, sonho não se esquecia, era o que se dizia.
Não era só dos sonhos noturnos que a magia falava. Em liberdade, ainda que sangrando e doendo, seguiu em busca de todos os sonhos possíveis, mesmo sem saber como.