sábado, 6 de novembro de 2021

Dos cantos ao vento ou da surpresa precisa

Despira-se dos muros e das tantas amarras que se autoimpunha para se permitir experimentar a plenitude do momento fugaz que se apresentava, do encontro ao acaso, do tempo do incerto. Era quase uma necessidade o não erguer construções estáveis antes mesmo que se pudesse erigir fortalezas. Era preciso que não soubesse aonde ia, como chegaria ou o que estaria à sua espera.

Vivera uma vida de autoimpedimentos por razões que não sabia explicar nem a si, nem aos demais; limites autoimpostos que a impediam de olhar a vida com um pouco mais da leveza que buscava para si. Ninguém nunca a ensinara a ser assim (ninguém a quem ela desse ouvidos de fato, pelo menos), mas o correr da vida a fez fechar-se de tal modo que não era fácil surpreendê-la. Os castelos todos que construíra levaram tempo até que cada tijolo fosse posto em seu lugar e uma inteira barragem de água cercasse seu entorno, de modo que, apenas após bastantes tempo, conhecimento e certeza, descia a ponte elevadiça que dava acesso ao seu interior. 


Acreditava que assim seu coração estaria protegido, mas, com os anos, percebeu que não havia trincheira capaz de garantir a segurança de seus sentires.

Por isso, então, decidira não erguer sequer uma pedrinha. Havia definido para si não que estaria aberta, mas que não deixaria de se se permitir saborear aquilo que a vida trouxesse ao seu caminho. Não buscaria, pois que nem o saberia fazer, mas não se esquivaria a aproximações. Cantara ao vento a liberdade que queria sentir e aguardara.

Eis que um sorriso se lhe fora apresentado. Um que já ali pairava, mas ela não enxergara. Um sorriso que se esboçava tão grandemente que era impossível não notar sua ascenção ao olhar desnudo, e ali era possível enxergar-lhe a alma, os medos, os desejos... era possível tocar-lhe o coração. Finalmente não sabia aonde ia e, de cara, se perdia no labirinto infinito das íris claras, do âmago, da energia que dela emanava. Naquele primeiro momento, enquanto caminhavam, tocara-lhe o braço em um movimento reflexo após uma brincadeira e sentira a faísca entre corpos que se reconheciam. Algumas horas se passaram em segundos de conversa fácil, risos ternos e assuntos delicados, como quando ela lhe citou um dado passado e sentira seu coração apertar querendo abraçá-la, mas, sem saber se deveria, se conteve em consternação. Eram tantos os movimentos imprevisíveis que quisera prenunciar, tantos os atos que tencionara em tensão, liames menores dos quais ainda não se livrara. Mas sentia, sentia em demasia, sentia que poderia explodir a qualquer instante. Quando, finalmente, seus lábios se aproximaram, todas as luzes do mundo se concentraram naquele instante, naquele par que a fitava com tanta avidez. Ao toque na pele da mão que vibrava, um pré-sorriso de quem sabe que está prestes a obliterar-se para renascer e, quando encontraram-se, fora como se o tempo parasse em um eterno segundo em que cabiam apenas seus corpos. Um momento perpetuado em silêncio e sentires capazes de evocarem memórias futuras.


Descera o morro certa de que, se tivesse mantido seus muros, os tijolos teriam sido derrubados um a um.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Cedo ou tarde

Por um período – desses que passam num piscar de olhos no tempo do universo, mas que duram uma eternidade, mesmo quando acabam –, recebera o mais puro afeto. Diariamente, se surpreendia com a quase reverência que lhe era dada, com o amor nos pequenos gestos e no sorriso que se lhe abria naquele rosto terno. Flagrava, pasma e de soslaio, o brilho daquele mar que se voltava em sua direção atraído por uma força que nunca pôde compreender. Via-se envolvida e protegida por braços que a erguiam como se não fosse um peso morto ou extra a ser carregado. Sentia, sim, mas não compreendia.
Quebrada por dentro, não percebia o que lhe era dado. Com um passado amargo, não sabia reconhecer aquele doce sabor. Eram tantas cicatrizes que não se via merecedora.

Por um período – desses que parecem correr contra o relógio da vontade, mas passam como em câmera lenta aos transeuntes – acreditara servir afeto.
Pegava-se assoviando melodias suaves enquanto o coração carregava a mente para os momentos delas. Preparava receitas simples, mas que sabia que eram capazes de evocar em sabor o sentimento que tinha. Gostava de grandes gestos, mas mais ainda dos pequeninos, pois entendia que era ali que se encontrava o detalhe do querer (e que era assim que o coração dela se enchia e, consequentemente, também o seu). Sentia a própria mão atraída à dela como que ligadas por um fio invisível. Fazia piadas bestas só para arrancar o gostoso som que a risada dela fazia.
Cega, não notou que também arrancava lágrimas com atos impensados. Inebriada, não viu que a raiva que direcionava ao passado refletia no presente que lhe fora dado.

O tempo passara. Tarde demais, atinou para a perda causada por ninguém se não ela. Cedo demais, viu seu coração fraquejar frente à fumaça do destino se dissipando. Cedo ou tarde, espera que a cicatriz se cure.

De tudo, pelo menos, entendeu, com ela, ser digna de afeto e amor e que guardar o coração não significa protegê-lo com muros a sete chaves, mas saber a quem entregá-lo.


quinta-feira, 1 de abril de 2021

Leitura da despedida

Soube ler nas entrelinhas do que ela não dissera e compreender que, como para si, talvez também para ela fosse difícil se fazer presente, que a dor era maior que a alegria, que as mágoas eram maiores que o amor e que o amor que machuca, ainda que inconscientemente e sem ser culpa de ninguém, é pior do que deixar o amor ir.

Soube entender que o distanciamento, assim como para si, funcionava como um mecanismo de defesa que protegia o corpo, a mente o coração e também a história que tiveram.
Percebeu, revendo uma série da sua adolescência e se enxergando no pior dos personagens, que não queria ser a pessoa que insiste tanto que chega a afastar o amor de si. Percebeu também que mendigar amor não faz bem a nenhuma das partes.


A vida é uma eterna e longa despedida de tudo aquilo que a gente ama, ela aprendera, inclusive do que ou de quem fica, pois que nada nem ninguém é para sempre igual, e a despedida também cabe para cada pedaço de si ou do outro que vai. Nada disso torna os adeuses mais fáceis, menos dolorosos, mas também não os torna menos necessários. A despedida é o lugar do coração esvaziado, ainda que repleto de saudades.

Talvez a despedida seja uma forma de encontrar o amor uma última vez, com todas as lembranças boas evocadas na memória ao mesmo tempo. Talvez a despedida seja a fórmula mais próxima da perfeita pra se descansar o amor.

Talvez a despedida seja algo impossível.



sábado, 13 de fevereiro de 2021

Histórias de Carnaval

Ela havia sido muito precoce. Na segunda série, com 8 ou 9 anos, “matava” a hora de aprender hinos na escola para se encontrar com Caio perto da piscina da escola e trocar beijos. Ela não tinha ideia do porquê de estar ali, de como isso impactaria sua vida futura ou mesmo de que, com aquela idade, deveria estar mais preocupada com outras coisas, como brincar, mas, com preguiça de tudo aquilo que não era nada demais arrumou uma desculpa qualquer sobre aparelhos para que os encontros cessassem. Antes disso, já lidava com a “paixonite” do garotinho Conrado que não a deixava sossegada no jardim de infância e que tirou a mãe do sério para encontrar um presente para sua adorável seja-lá-o-que-ela-fosse quando esqueceu da celebração dos seus 6 anos na escolinha. Aos 10 anos, dividia-se entre Guilherme e Charles nas aulas de Tai Chi e parecia não se importar com o fato de que ambos gostavam dela, mas ela, de fato, não gostava de nenhum. Aos 11, Nathan lhe dera a primeira – e única – joia que um rapaz lhe daria, no dia dos namorados durante a terceira série. Em algum momento, algo dentro dela mudou e ela decidiu que não participaria mais dessas ações vazias. Quando chegou à adolescência e todas as suas amigas viviam apaixonadas por algum rapaz e todos os jovens planejavam quem iriam beijar na próxima festa, ela simplesmente participava do teatro do crescimento como quem apenas olha. Não se interessava de fato por nada ou ninguém e, quando a fagulha acendeu, ela obviamente decidiu silenciar. A “primeira” vez que ela deu um beijo – ou como fazia todos crerem – foi entre os 15 e 16 anos por pressão do alvo real de seu interesse e para provocar a tal garota que mexia com ela de uma maneira que ela sequer entendia. Era um Carnaval, festa no interior, o rapaz, sem nenhum atributo, disputava a atenção de todas as garotas, inclusive a de que ela gostava. Entregou-se a um beijo sem vontade inconsciente de que fazia isso mais pela atenção da garota que do garoto Joãozinho. Passou todos os demais dias do Carnaval com o rapaz, no que, mais tarde, tornar-se-ia quase uma tradição de se “casar” em eventos. Seguia não sentindo nada nos beijos e pegações, mas, pelo menos, fazia isso com apenas uma pessoa. Não que ela tivesse preconceito com quem “pegava geral”, mas, se tinha de passar pelo martírio de fazer algo sem vontade, que fosse sem ter de fazer toda a dança e a cena do pré-qualquer-coisa a cada hora. Passou três anos indo e vindo do que se pode chamar de um relacionamento com ele, apresentou à família e tudo, detestando cada minuto daquela peça. Depois dele, tiveram outros; fofocas para contar para as amigas e nada mais. Houve o rapaz do show de axé com as amigas, com que também se “casara”, afinal de contas, quem vai a um show de axé e fica com um mesmo cara a noite toda, cara esse que disse que ia ao banheiro e voltaria e, pasmem, realmente voltou. Não foi em um Carnaval, mas o clima certamente se adequava. Houve também o rapaz da viagem com as amigas para a praia. Ele foi enrolado por uma noite inteira e voltou na noite seguinte; na falta do que fazer e frente à pressão social do que se espera de uma adolescente, beijou-o na segunda noite. Todos os outros dias do Carnaval foram também com ele, que a buscava em casa, levava em casa, a acompanhou para a cidade vizinha, famosa pelo forró; a sorte dela é que, no final do Carnaval, cada um foi para a sua cidade e ela não teve mais de lidar com ele. Naquele Carnaval falara com as amigas sobre a sexualidade do irmão em uma vã tentativa de que elas a compreendessem. Talvez tenha sido ali que desistiu não só do Carnaval, mas de tentar agradar aos demais, de tentar caber em algo que não combinava com ela. Passou os próximos Carnavais em casa, feliz de não ter de passar por desprazeres sem fim. Passou também os próximos muitos anos sozinha; vez por outra fingia idealizar algum rapaz para que o círculo de amizades não a considerasse uma completa estranha. 



Levou um bom tempo para que retornasse a qualquer tipo de celebração carnavalesca e, quando o fez, trocou as ruas da cidade que começavam a ter movimento por retiros espirituais. A essa altura, já havia se encontrado, já estava em paz consigo, já havia até mesmo dado o que ela passou a considerar como o primeiro beijo, já que esse sim envolveu vontade e prazer. Mas ao longo de tudo isso, tornara-se uma pessoa mais fechada, menos propensa a festividades, então preferia passar por esses períodos com as Medicinas e com os ensinamentos. Havia passado por um rápido “primeiro” relacionamento – não era o primeiro, mas contava como se fosse – e por um segundo – marcado por toda sorte de problemas que a deixaram danificada para o futuro – quando um amigo a convenceu a ir a um Carnaval de rua. Um dia apenas, ela dissera, e a princípio assim foi. Curtiu com os amigos um dia inteiro, usou e abusou de várias substâncias, voltou para casa e dormiu. Mas seus planos para aquele dia tinham sido frustrados; o Carnaval havia acabado, porém seu coração não parava de batucar por um afeto que crescia antes mesmo de ter lugar. Quando o amigo insistiu para que fosse para o pós-Carnaval – a ressaca antes que a vida voltasse aos eixos – disse que não iria, mas mudou de ideia ao se encontrar com ela em um muito que arranjado piquenique que não ressoou com as batidas do coração que acelerava ao ver aquele sorriso. Como manda a tradição, “casou” também naquela festa, naquele Carnaval, mas foi a primeira (e única) vez que gostou do casamento, em que cada beijo ressoava uma batida de tambor no coração.



sábado, 16 de janeiro de 2021

Quereres

 

Queria a sorte da fazê-la sorrir todos os dias, de olhá-la nos olhos e saber-lhe inteira, de reconhecer cada desejo e tentar realizar, de a fazer se arrepiar dos pés à cabeça. 

Queria a leveza de poder olhar para o lado e conseguir respirar aliviada, com a certeza de que ali fazia morada um amor tranquilo e parceiro. 

Queria um relógio que marcasse o tempo delas de forma diferente das horas do mundo, em que o ponteiro dos segundos marcasse as risadas; o dos minutos, os beijos e abraços; o das horas, o amor crescente. 

Queria um universo que barrasse o mal do mundo, como um muro-peneira que só permitisse o bem de se aproximar dela.

Queria que cada momento juntas fosse o primeiro  com a antecipação do que estava por vir, o cheiro de novidade, o calor a se espalhar -, mas também que fosse como a mais recente - com as memórias, os sentires, os saberes.

Queria ser a certeza em um mar de dúvidas, o aconchego nos achaques do mundo, a mão a ser segurada no medo, o cuidá-la em tempos de sofrer.

Queria se desmontar pra que ela visse cada parte, queria arder junto ao corpo dela em um calor só delas, queria tocar-lhe a alma com gentileza, queria estar ao lado dela como quem não tem aonde ir,  queria escolhê-la todos os dias.

Queria tanto, mas nada mais podia. Ficar doía, ir embora também.

É que dizer adeus não é fácil pra ninguém, menos ainda pra quem sabe que tinha a melhor mão possível na sua, mas é preciso reconhecer as derrotas pra seguir sem pesos e sem medo de onde se vai chegar e quem é que vai caminhar junto. É preciso reconhecer quando duas mãos não mais se tocam. É preciso partir.






quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Amor?

Ela achava que não merecia o amor. Acreditava piamente que não era digna. As experiências que tivera foram todas marcadas por culpa, por violências, por dor. Mais velhos ou mais novos, todos os parceiros a deixaram em frangalhos. O amor não deveria ser assim. Como acreditar no amor, como se crer merecedora dele, se sequer sabia o que era o Amor?

Perambulou pela vida sob véus, escondendo-se dos olhares alheios sob camadas de roupas, camadas de máscaras, camadas e camadas de proteção. A entrega não lhe era tangível, pois que não se sabia por inteiro e não sabia de novo se abrir. Dessa forma, desenhava amizades por aí, escondendo-se de si e dos outros.

Quando, um dia, o Amor caiu-lhe ao colo, não soube reconhecer. Presa ainda nas próprias teias, olhou para o Amor e teve medo. Sob tantas camadas, era impossível ser vista como era; e ela já não tinha forças para se despir como deveria. O Amor lhe olhou nos olhos... indagador, perguntou-lhe se poderia fazer morada. Ela muda... não entendia a língua do Amor. O que era essa voz suave que não ameaçava? De onde vinha esse calor que não ultrapassava limites? Como era possível tocar o fogo e não se machucar?

O Amor bem que tentou. Ele ficou por ali, pairando, tentando desmontar as tantas defesas que ela tinha. Ele tentou entrar por várias brechas, mas ela não o reconhecia. O Amor escreveu, o Amor cantou, o Amor gritou, mas ela não entendia. Ele fez de tudo para se aninhar. O Amor tentou, mas até o Amor se cansa. 



quinta-feira, 18 de junho de 2020

11:11

Nos últimos dias, ela havia se esquecido de observar a passagem do tempo. Presa em si, questionando o passado, revendo e revivendo passagens, não sabia sequer qual era o dia da semana ou se o mês havia mudado ou mesmo se as horas passavam lenta ou velozmente. Perdida dentro do seu próprio labirinto, reconhecendo problemas que antes não fora capaz de enxergar, já não se importava mais com o bater das badaladas.
Parecia estar no automático em suas atitudes. Respondia quando lhe questionavam algo, mas não sabia dizer se as respostas cabiam para as perguntas. Preparava os alimentos de forma tão desconectada que errava em pontos básicos sem notar. Ora salgava demais a comida, ora esquecia a ordem dos ingredientes. Cansada, nem notava se os outros reclamavam do que era servido.
No escuro, pensava em como as coisas se conectavam, em como os erros a trouxeram até aqui e em como isso reverberaria no futuro. Dentre as coisas que finalmente reconhecia em si, notava padrões palpáveis que nunca antes se permitira perceber, pois que muito doloridos. Lidar com sua sombra nunca fora seu forte, mas agora era capaz de discernir a importância de não se ignorar esse lado. Quando se nega as trevas, é impossível que a luz tenha lugar.
Quando se nega o passado, certamente ele assombra o presente com garras invisíveis àqueles que não desejam saber. E fora isso que fizera sem notar. Negara o que havia sido na tentativa de construir novas histórias, mas estas se alicerçavam em areia movediça e pouco a pouco afundavam. Quando mal se podia respirar no espaço que restava, era tarde demais para segurar as mãos e tentar erguer.
Tudo está entrelaçado, não há como fugir da estória que se tenta apagar no afã de não sentir dor. Silenciosamente, a dor ganha espaço e incita respostas nem sempre agradáveis, ainda que não consiga de fato doer. Muitas vezes, os estragos que ela perpetua vão além do que se tentou varrer pra debaixo do tapete e, então, como em gênese, cria outras quiçá piores que a original.
Não se engana o tempo; nem a dor. Mas eles sorrateiramente constroem ilusões que crescem, ressoam e ganham vida. 

Não notava o tempo passar, mas toda vez que pegava o celular para se distrair com coisas inúteis e silenciar as vozes em sua cabeça, a tela mostrava 11:11.