quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Amor?

Ela achava que não merecia o amor. Acreditava piamente que não era digna. As experiências que tivera foram todas marcadas por culpa, por violências, por dor. Mais velhos ou mais novos, todos os parceiros a deixaram em frangalhos. O amor não deveria ser assim. Como acreditar no amor, como se crer merecedora dele, se sequer sabia o que era o Amor?

Perambulou pela vida sob véus, escondendo-se dos olhares alheios sob camadas de roupas, camadas de máscaras, camadas e camadas de proteção. A entrega não lhe era tangível, pois que não se sabia por inteiro e não sabia de novo se abrir. Dessa forma, desenhava amizades por aí, escondendo-se de si e dos outros.

Quando, um dia, o Amor caiu-lhe ao colo, não soube reconhecer. Presa ainda nas próprias teias, olhou para o Amor e teve medo. Sob tantas camadas, era impossível ser vista como era; e ela já não tinha forças para se despir como deveria. O Amor lhe olhou nos olhos... indagador, perguntou-lhe se poderia fazer morada. Ela muda... não entendia a língua do Amor. O que era essa voz suave que não ameaçava? De onde vinha esse calor que não ultrapassava limites? Como era possível tocar o fogo e não se machucar?

O Amor bem que tentou. Ele ficou por ali, pairando, tentando desmontar as tantas defesas que ela tinha. Ele tentou entrar por várias brechas, mas ela não o reconhecia. O Amor escreveu, o Amor cantou, o Amor gritou, mas ela não entendia. Ele fez de tudo para se aninhar. O Amor tentou, mas até o Amor se cansa. 



quinta-feira, 18 de junho de 2020

11:11

Nos últimos dias, ela havia se esquecido de observar a passagem do tempo. Presa em si, questionando o passado, revendo e revivendo passagens, não sabia sequer qual era o dia da semana ou se o mês havia mudado ou mesmo se as horas passavam lenta ou velozmente. Perdida dentro do seu próprio labirinto, reconhecendo problemas que antes não fora capaz de enxergar, já não se importava mais com o bater das badaladas.
Parecia estar no automático em suas atitudes. Respondia quando lhe questionavam algo, mas não sabia dizer se as respostas cabiam para as perguntas. Preparava os alimentos de forma tão desconectada que errava em pontos básicos sem notar. Ora salgava demais a comida, ora esquecia a ordem dos ingredientes. Cansada, nem notava se os outros reclamavam do que era servido.
No escuro, pensava em como as coisas se conectavam, em como os erros a trouxeram até aqui e em como isso reverberaria no futuro. Dentre as coisas que finalmente reconhecia em si, notava padrões palpáveis que nunca antes se permitira perceber, pois que muito doloridos. Lidar com sua sombra nunca fora seu forte, mas agora era capaz de discernir a importância de não se ignorar esse lado. Quando se nega as trevas, é impossível que a luz tenha lugar.
Quando se nega o passado, certamente ele assombra o presente com garras invisíveis àqueles que não desejam saber. E fora isso que fizera sem notar. Negara o que havia sido na tentativa de construir novas histórias, mas estas se alicerçavam em areia movediça e pouco a pouco afundavam. Quando mal se podia respirar no espaço que restava, era tarde demais para segurar as mãos e tentar erguer.
Tudo está entrelaçado, não há como fugir da estória que se tenta apagar no afã de não sentir dor. Silenciosamente, a dor ganha espaço e incita respostas nem sempre agradáveis, ainda que não consiga de fato doer. Muitas vezes, os estragos que ela perpetua vão além do que se tentou varrer pra debaixo do tapete e, então, como em gênese, cria outras quiçá piores que a original.
Não se engana o tempo; nem a dor. Mas eles sorrateiramente constroem ilusões que crescem, ressoam e ganham vida. 

Não notava o tempo passar, mas toda vez que pegava o celular para se distrair com coisas inúteis e silenciar as vozes em sua cabeça, a tela mostrava 11:11.