Sonhei com a Morte essa noite. Vestida de mágico, Ela sumia com todos ao meu redor, e ninguém - nem eu! - entendia o que acontecia; até que Ela veio me buscar. Ao se aproximar de mim - eu já não via ninguém nem nada ao meu redor -, percebi um isqueiro em Sua mão. Eu logo entendi o jogo Dela com Sua chama azul no isqueiro. Aquela chama não servia a fazer iluminar o ambiente, servia apenas a antever Sua silhueta. Quem observa aquela chama corre o risco de se perder para sempre, pensando almejar o céu; chama que mal se vê, não se sente da maneira precisa. A Morte era exatamente como todos A descreviam, aquela imagem em ossos, de capa preta e foice na mão. Nesse momento, peguei-me pensando se não seria apenas uma imagem criada pela minha cabeça, e, ali, na minha frente, como quem ouve meus pensamentos, a Morte se transformou. De repente, Ela era uma senhora bem trajada, com um sorriso leve e um bloco de anotações na mão. "Cada um vê a morte como quer", Ela disse. Então, Ela me convidou a caminhar.
Andar por um ambiente escuro sem nenhuma réstia de luz, confesso, não é nada fácil. E aquele silêncio eterno me incomodava, por isso, perguntei-Lhe o que havia nos blocos. Era mera falta de um assunto pertinente, afinal, o que se poderia conversar com a Morte? Após alguns segundos, Ela respondeu que escrevia ali Suas impressões sobre cada alma que buscava. Petulante, pedi que me deixasse ver alguma anotação. Ela parou, procurou determinada página e me estendeu o bloco, segurando o isqueiro, cuja chama se tornou ligeiramente amarelada, sobre o texto. Em uma letra bem desenhada, li: "Talvez essa tenha sido a coleta mais difícil para mim. Esta parece ser a alma com o maior amor à vida que já busquei aqui, dessas que dão valor a cada coisa, dessas que deveriam viver muito e servir de exemplo. São essas as que se vão mais cedo, e, hoje, se eu tivesse o poder da escolha, deixaria que essa pessoa permanecesse em seu caso de amor.". Fiquei pensando naquilo. Decidi inquirir sobre quais seriam as impressões sobre mim. A essa pergunta, Ela respondeu que eu era a pessoa com o maior medo da vida que Ela havia visto, que eu deixava de viver inúmeras coisas devido a isso. Ela parecia intrigada, sem conceber a possibilidade de alguém que tema a vida e não a morte. Tentei elaborar as ideias de um modo coeso. Disse a Ela que tinha medo do que não conhecia, do que não sabia entender, do que me fugia às mãos. Ela gargalhou. Percebendo minha estupidez, ri junto à Morte da incapacidade de viver plenamente por um medo infantil e infindado. Era isso (rir) ou me encolher em posição fetal no chão, chorando as dores e o temor.
Caminhamos pelo que me pareceu fossem horas, mas deveriam ser fugazes segundos. Já me entediava novamente, quando a chama do isqueiro deixou uma vaga faísca escapar e iluminar brevemente a nossa frente. Imagens poucas se desenhavam. Ela disse que cada um sabe e escolhe seu destino também após a morte. Não é que houvesse portas à minha frente pra que eu sorteasse um caminho aleatoriamente. A escolha dependia de mim. Bastava eu imaginar, que o cenário se produzia. "Cada um escolhe sua morte, por melhor ou pior que seja", Ela afirmou.
Escolhi acordar. Roubei o isqueiro da Morte, acreditando enganá-la. Acordei e acendi um cigarro, iluminando o breu da noite, celebrando o furto e o engodo, temendo a vida, acelerando processos. Escolhi acordar, pensando enganar a Morte; risquei Seu isqueiro e a vida se consumiu.
