quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Chama da Morte

Sonhei com a Morte essa noite. Vestida de mágico, Ela sumia com todos ao meu redor, e ninguém - nem eu! - entendia o que acontecia; até que Ela veio me buscar. Ao se aproximar de mim - eu já não via ninguém nem nada ao meu redor -, percebi um isqueiro em Sua mão. Eu logo entendi o jogo Dela com Sua chama azul no isqueiro. Aquela chama não servia a fazer iluminar o ambiente, servia apenas a antever Sua silhueta. Quem observa aquela chama corre o risco de se perder para sempre, pensando almejar o céu; chama que mal se vê, não se sente da maneira precisa. A Morte era exatamente como todos A descreviam, aquela imagem em ossos, de capa preta e foice na mão. Nesse momento, peguei-me pensando se não seria apenas uma imagem criada pela minha cabeça, e, ali, na minha frente, como quem ouve meus pensamentos, a Morte se transformou. De repente, Ela era uma senhora bem trajada, com um sorriso leve e um bloco de anotações na mão. "Cada um vê a morte como quer", Ela disse. Então, Ela me convidou a caminhar. 
Andar por um ambiente escuro sem nenhuma réstia de luz, confesso, não é nada fácil. E aquele silêncio eterno me incomodava, por isso, perguntei-Lhe o que havia nos blocos. Era mera falta de um assunto pertinente, afinal, o que se poderia conversar com a Morte? Após alguns segundos, Ela respondeu que escrevia ali Suas impressões sobre cada alma que buscava. Petulante, pedi que me deixasse ver alguma anotação. Ela parou, procurou determinada página e me estendeu o bloco, segurando o isqueiro, cuja chama se tornou ligeiramente amarelada, sobre o texto. Em uma letra bem desenhada, li: "Talvez essa tenha sido a coleta mais difícil para mim. Esta parece ser a alma com o maior amor à vida que já busquei aqui, dessas que dão valor a cada coisa, dessas que deveriam viver muito e servir de exemplo. São essas as que se vão mais cedo, e, hoje, se eu tivesse o poder da escolha, deixaria que essa pessoa permanecesse em seu caso de amor.". Fiquei pensando naquilo. Decidi inquirir sobre quais seriam as impressões sobre mim. A essa pergunta, Ela respondeu que eu era a pessoa com o maior medo da vida que Ela havia visto, que eu deixava de viver inúmeras coisas devido a isso. Ela parecia intrigada, sem conceber a possibilidade de alguém que tema a vida e não a morte. Tentei elaborar as ideias de um modo coeso. Disse a Ela que tinha medo do que não conhecia, do que não sabia entender, do que me fugia às mãos. Ela gargalhou. Percebendo minha estupidez, ri junto à Morte da incapacidade de viver plenamente por um medo infantil e infindado. Era isso (rir) ou me encolher em posição fetal no chão, chorando as dores e o temor. 
Caminhamos pelo que me pareceu fossem horas, mas deveriam ser fugazes segundos. Já me entediava novamente, quando a chama do isqueiro deixou uma vaga faísca escapar e iluminar brevemente a nossa frente. Imagens poucas se desenhavam. Ela disse que cada um sabe e escolhe seu destino também após a morte. Não é que houvesse portas à minha frente pra que eu sorteasse um caminho aleatoriamente. A escolha dependia de mim. Bastava eu imaginar, que o cenário se produzia. "Cada um escolhe sua morte, por melhor ou pior que seja", Ela afirmou. 
Escolhi acordar. Roubei o isqueiro da Morte, acreditando enganá-la. Acordei e acendi um cigarro, iluminando o breu da noite, celebrando o furto e o engodo, temendo a vida, acelerando processos. Escolhi acordar, pensando enganar a Morte; risquei Seu isqueiro e a vida se consumiu.




sexta-feira, 25 de março de 2016

Grito no escuro

Em tempos de balanço, navega em um mar revolto, sem ter capacidade de ver o horizonte. A ausência de raízes a atormenta todo o tempo, e ruma silente ao desconhecido, sem saber o que há de encontrar. Eis que torna-se uma pessoa arredia, que dista de tudo e todos porque não sabe gritar o que está preso na garganta. Afoga-se em atividades mil para não ter que pensar e acaba por não fazer nada do previsto porque a mente não cala. Dormir já não cabe há muito: se acordada, custa a cair no sono porque são muitas as vozes internas; se finalmente adentra o sonhar, é perseguida por monstros - próprios e do mundo - que não permitem descanso. Vaga nas horas sem sequer se dar conta das próprias ações, mal responde por si. Incapaz, o cansaço a toma e pasma pelos dias. O não-lugar existencial que por vezes a arrebata ganha força na ausência de um espaço real onde possa se fixar. Sem um chão, plaina pelo espaço da vida sem nenhuma certeza de si ou dos próximos passos. Tudo isso a altera de modo pungente. O estresse da ausência de si em si gera ausências de si em todos os espaços por onde passa; já não mais trabalha bem, já não mais se porta bem, já não mais se apresenta, já não mais tem vontades e desejos. Finge se importar e sorri um sorriso vazio para que ninguém note a diferença; está sem estar. Tanta ausência implica a solidão contumaz a que já se acostumou e, sem se dar conta, navega rumo a uma ilha, onde não há contato com o mundo. No escuro, chora a inépcia de ser e, não vendo futuro em nada, pesa consigo a validez de jogar tudo pro alto e simplesmente, por não se importar o bastante, seguir vazia rumo ao vazio. Se não o faz, é por ausência de coragem e por temor das consequências e pelos que ficam. As horas passam vazias de si e de qualquer coisa que julgue meramente pertinentes. Refugia-se nas sombras - próprias e do mundo - para não ter de ver a luz e não ter de enfrentar o rosto no espelho e perceber o quanto envelheceu em tão curto espaço de tempo. Abandonou-se à deriva e respira apenas porque o ato é automático. Cumpre tarefas sem ter ideia do resultado e não se importa com este. Lânguida, aceita o que tem e já não luta por mais, apesar de saber que deveria querer. Nota a incompletude das coisas que já quis tornar melhor, mas se dá por, despretenciosamente, satisfeita porque não sabe mais buscar. Apenas espera o tempo passar, sem ter esperança de que as coisas se resolvam e sem forças para fazê-las acontecer. Apenas vaga entre cômodos ignorando as vozes mentais que porventura surgem para iluminar. É que não vê a luz mais, nem no fim do túnel, nem no prédio vizinho. Segue entorpecida, enebriada pela tempestada que se forma nos pensamentos. Parece fazer tudo ao contrário do que deveria. Como se quisesse dar força à massa destrutiva que a rodeia, testa cada limite à beira do impossível e se joga em todos os precipícios que surgem no caminho. A autodestruição sempre fôra sua arma mais poderosa e parece ser dificil não usá-la em tempos como este. Cega, não tateia o solo, apenas anda e cai. Cai o bastante para não mais querer levantar. Observa a não concretização de cada coisa que espera e se agarra aos "nãos" que a vida lhe joga na cara. Vive como se não fosse haver um novo dia, porque quase pede para que não haja e espera que o Universo se encarregue disso. Aparentemente, seria mais fácil. Solução pronta para tudo que não consegue resolver. O remédio do tempo parece nunca surtir efeito e as dores se acumulam na cabeça, no corpo, na alma. A cada dia, fica mais pesado levantar da cama, manter a vida em curso, salvar as relações já estremecidas. Caminhar se tornou um hábito automático; do contrário, estaria parada no mesmo lugar.

Quanto ao amor, parece não ter nem mais por si mesma. E finge estar tudo bem, mas percebe que, já algum tempo, viraram - ela e a outra - dois rios estranhos. Parece que, com o passar do tempo, as águas das duas teimam em fazer troça. Onde antes os rios fluiam, paralelos e em contato, em calmaria, forma-se hoje pororoca que deságua e se perde em um mar infinito. Quem observa de fora vê dois rios; quando aproxima-se, o espelho reflete amor. Quem visita as margens pode tocar as águas e nelas se banhar. Quem mora nos rios, por outro lado, conhecendo suas profundezas, sabe que o risco de transbordar é iminente e que, por baixo da calmaria, há um turbilhão que remexe as lamas profundas das águas, tornando-as turvas.
Se um braço de um rio penetra o outro sem aviso, de repente, este toma a ação em atentado e responde criando uma onda que reverbera até a nascente. O amor das águas está em desvairio e qualquer tentativa de fluir com leveza causa furor e tormenta. Um rio sofre e chora a seca que não consegue mitigar e a distãncia que surge a os ilhar. O outro parece não mais fazer caso de habitar as outras águas. Em átimo, o rio tenta ístimos, mas, como em sismos, a terra treme criando uma dorsal. Águas que antes corriam juntas, são agora rios intermitentes que cismam em não se encontrar.

Quanto ao futuro - de si, do amor, da vida -, já não espera nada, já não planeja nada, já não vê mais possibilidades. Sem asa, sem casa e sem si, apenas observa as voltas dos ponteiros sem esperança de mudanças. Apenas caminha a esmo, sem enxergar um palmo à sua frente, e tenta levantar com cada sol que se ergue no horizonte, sonhando com uma noite eterna para não mais ter de ver seus sonhos explodindo como bolhas de sabão. E, se não grita, é porque não tem voz, porque foi calada pela vida, porque acha que ninguém há de ouvir.